No calor do inverno
 



Cronicas

No calor do inverno

Bantu Silva


No dia 21 de junho, nós aqui no hemisfério sul, recebemos os raios de sol de forma oblíqua, tendo menos luz solar e, portanto, menos calor. É o inverno. Mas no Brasil, em sua maior extensão, se conhece duas estações: a seca e a chuvosa. Em ambos os casos faz calor. Um país tropical e muito bonito por natureza, com certeza. Até aí tudo bem. Mas abençoado por Deus, fica a dúvida. Se a chuva for Dele, a seca será do Outro. Tudo que é seco pega fogo. Este é um país dividido, onde uma parte desafia as verdades, como vacinas, a redondeza da Terra, inclusive as do clima. E muitas vezes algum brasileiro míope, embaralha as letras e confunde inverno com inferno; alguns viram um projeto de satanás.

Um coitado de cantor, em seu trabalho operário, cantava numa praça de alimentação de shopping, ganhando seu sustento e inaugurando o solstício de inverno, neste país quase chamado de Terra de Santa Cruz. Romanos por aqui não faltam para atirar pedras na cruz. Ou pratos.

O cristo do cantor cantava bem. Para alí vio do tédio de uma noite de inverno quase inexistente. Inexistente foi o ser humano que se sabe lá por que, talvez estivesse no seu inferno astral, decidiu, no calor da estação, atirar um prato no coitado do cantor.

Ninguém esperava. Ninguém viu a decolagem do objeto ainda não identificado. Deve ter sido um diabozinho fugido de algum verão infernal perdido, que atirou aquele prato. Foi um prato voando de dentro do buraco negro da plateia em direção ao palco iluminado, de forma oblíqua, assim, bem inclinado, que passou de raspão pelo cantor, indo espatifar-se atrás dele.

O cantor seguiu na voz, com a normalidade dos justos, dos que sabem que tem razão, seja lá qual for, dos que vão dormir naquela noite com a consciência tranquila de qualquer coisa. E como isso assusta!

Falta de respeito. Ou foi um marido com ciúmes, quando ao voltar do banheiro viu a esposa com olhares amorosos pro cantor. Ou uma ex da porra. Ou um mau humor da ausência de amor, cuja música que ele cantava ressaltou esse sentimento. Ou foi mesmo um turista grego. Não sei. Só acho que tinha um coração no prato.

Quem foi? Quem? Alguém? Ninguém? Ou foi também? Qual seria o nome de tal meliante? Ah, se fosse comigo pegava os cacos e fazia o elemento engolir. Ah, eu revidava com o microfone na cara. Na cara? Eu enfiava no cu. Desgraça de ser humano, essa porra. Não gostou? Joga tomate. Já aproveita e pede uma saladinha para acompanhar a cerveja.

Mas o cantor era um negro tão lindo, tão gostoso, que eu só lhe jogaria beijos.


Bantu Augusto Silva, formado em Economia e com pós-graduação em Relações Internacionais, é militante do Movimento Sem Terra, onde colaborou com o Coletivo de Literatura Palavras Rebeldes e com o Grupo de Estudos de Terra, Raça e Classe. Publicou alguns contos no Jornal Brasil de Fato. Desde 2018 mora em Brasília, quando começou a escrever poesias, tendo publicado, desde então, e de forma independente, cinco livros de poemas. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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